A radical desconstrução de Twin Peaks

Rafael Senra
6 min readOct 25, 2017

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Afinal, do que a série se trata? Há algo para entender? Porque tanta gente acha Twin Peaks (e David Lynch) genial?

As reações à série norte-americana Twin Peaks lembram muito as reações controversas de obras que lidam com elementos fantásticos ou absurdos — os fãs se dividem, uns amam, outros odeiam (e aqueles que são neutros dizem no máximo que “não entenderam nada”). Como esses dias, em que vi uma amiga leitora voraz confessar ter detestado o livro Cem Anos de Solidão, que, como Twin Peaks, mostra uma ampla galeria de personagens em uma cidade bucólica, além de ambas lidarem com uma narrativa aparentemente sem nexo ou linearidade.

A meu ver, “entender” não é a questão chave para esse tipo de obra. A exigência em cima do espectador envolve mais a peculiaridade da experiência. No caso de Twin Peaks, é preciso se dispor a apreciar uma série que quebra diversos arquétipos e estruturas familiares de narrativas. Assim, temos vilões que surgem nos corpos de várias pessoas, personagens duplicados, e um protagonista que permanece em estado semi-catatônico por quase toda a terceira temporada. E é daí para pior.

Lendo alguns textos internet afora, percebi que, sim, existe uma história por trás da série. Absurda, gigante, cheia de detalhes, algo tão imenso e delirante quanto um sonho, mas é uma história.

A peculiar forma de Twin Peaks

Qualquer um que assistiu a série sabe que esperar algo previsível levará à inevitável frustração. Os criadores David Lynch e Mark Frost pretendem subverter todas as regras estabelecidas na tradição do audiovisual, dando ao espectador uma sensação intensa de que cada cena será realmente imprevisível.

O ritmo lento dessa terceira temporada tem fatigado muitos espectadores, mas meu palpite é de que isso tem uma razão especial: a meditação. Lynch é um divulgador e praticante das técnicas de meditação transcedental (seu livro Em Águas Profundas, que muitos achavam que seria autobiográfico, é quase todo focado no tema da meditação).

Espectadores ansiosos podem ter ataques de ansiedade graves em algumas cenas. Como em um dos últimos capítulos, em que Dale Cooper e Sarah Palmer dirigem por uma estrada escura durante dez minutos, sem nada de significativo acontecendo.

É impressionante como Lynch consegue criar suspense e tensão em situações que, são completamente banais no aspecto visual. Ele coloca atores em locações comuns — pessoas em uma floresta ou uma estrada — e, apenas de posse do contexto da trama, da trilha sonora e de outros detalhes, ele estabelece um clima. Muitas vezes, sem precisar recorrer a truques de produção nem efeitos visuais elaborados.

Contudo, se o aspecto visual por vezes é quase que minimalista ou despojado, a trilha sonora e o caráter auditivo de Twin Peaks merecem uma atenção especial. Tanto é que, ao perguntarem para Lynch em uma entrevista o que ele diria para aqueles que querem se aventurar na série, ele respondeu que devem assisti-la com fones de ouvido. Foi seu único conselho.

Além das músicas (várias delas compostas por Lynch ou por seu antigo colaborador Angelo Badalamenti), podem ser notados diversas texturas sonoras, ruídos e sons variados, que se incorporam muito organicamente às cenas, intensificando drasticamente a trama.

A volta dos que já foram

Kyle MacLachlan (Dale) e Ontkean (Truman)

As soluções para substituir atores ausentes foram das mais variadas. O Xerife Truman, personagem central nas duas primeiras temporadas (ainda que Michael Ontkean fosse um péssimo ator) foi substituido por Robert Forster — que tem o nome de “Xerife Truman” pelo fato de ser irmão de Harry. Ontkean se diz aposentado, e não quis abrir mão da decisão diante do papel, que acabou recusando. Curiosamente, Lynch disse que a primeira opção para o Xerife no início da série foi Robert Forster.

Michael J. Anderson

Uma baixa notável foi o ator Michael J. Anderson, que interpretava o Anão (seu personagem no elenco consta como The Man from the Other Place). Ainda vivo, ele recusou o retorno de maneira polêmica, depois de diversos posts no Facebook aludindo à propostas pouco interessantes no sentido financeiro. Vale lembrar que Anderson brigou com vários atores tanto na série quanto no filme Twin Peaks: Fire Walk With Me. David Lynch também se afastou do ator durante uma época, e ele foi banido da lista de convidados da Twin Peaks Fan Festival depois de desrespeitar uma fã. Seu personagem foi substituído por uma árvore (!?).

David Bowie ao centro

E, claro, há David Bowie, que interpretou outro personagem essencial, Phillip Jeffries, mas que faleceu pouco antes do início das filmagens da nova temporada. Uma chaleira interpreta o personagem — coisas que só podem acontecer no universo surrealista de David Lynch.

Protagonistas

Se Game of Thrones chocou a tantos com a morte daqueles que pareciam ser os principais personagens da série, Twin Peaks contribui com outro dado interessante sobre seu protagonista.

Lynch não apenas se contenta em triplicar Dale Cooper (que surge como Dale, como uma versão maligna, e como Dougie Jones), mas deixa Dale/Dougie agindo como um recém nascido por cerca de 90% do tempo.

Em que outra série seu protagonista passava o tempo apenas repetindo palavras das pessoas e procurando café e comida?

Kyle MacLachlan como Dougie Jones

É interessante como mesmo na escolha de atores, Lynch frustra as espectativas de quem acompanha a série. Enquanto atores consagrados tem aparições relâmpago na tela (como David Bowie, Michael Cera, Monica Belluci), outros não-atores são incorporados quase que no improviso.

Como o vilão Bob, marcante nas duas primeiras temporadas, que era ninguém menos que o figurinista de Twin Peaks, Frank Silva. Em uma das filmagens, Silva apareceu num frame por engano, e Lynch foi avisado de que deveriam refilmar. Porém, ao ver a cena, o diretor achou tão assustadora aquela visão que acabou por incorporar o figurinista ao elenco. Infelizmente, Silva morreu em 1995 por complicações relacionadas à AIDS, e não pôde retornar na versão de 2017.

Teorias

Existem várias, e são maravilhosas. Uma delas diz que Twin Peaks e Gilmore Girls se passam ao mesmo tempo, outra que os episódios finais 17 e 18 devem ser assistidos ao mesmo tempo (um teria o final que Frost queria e outro o final de Lynch), outra é a de que existem diversas relações entre Twin Peaks e o filme Dune (também dirigido por Lynch e que também conta com o ator Kyle MacLachlan), há a teoria de que a realidade paralela visitada por Cooper e Diane é o nosso mundo real (o que justificaria o sonho com Mônica Belucci), e uma teoria fantástica em que Lynch e Frost vinculam o mistério das coisas como o grande sentido da vida (mesmo link anterior, último parágrafo).

A complexidade da desconstrução

Tenho para mim que qualquer artista disposto a desconstruir os pressupostos de sua área de atuação precisam, no mínimo, conhecer muito bem esses pressupostos. E, nos filmes lineares e padronizados que David Lynch fez, ele demonstrou ter grande domínio da narrativa.

Dois se destacam, que são The Elephant Man (1980), e The Straight Story (1999), este último um dos meus preferidos de todos os tempos. São obras em que a ótima direção beneficia o ritmo e a intensidade da história, e deixam claro o quanto Lynch pode ser bom ao realizar algo mais convencional.

Mas a maioria dos seus filmes são realmente surreais e distantes dos padrões aos quais estamos acostumados. Até hoje os fãs se debatem sobre qual seria a história por trás de Mulholland Drive (2001) ou Inland Empire (2006).

Twin Peaks se encontra na mesma pegada, uma série que, no fundo, é como que um filme dividido em várias partes. Depois de anos afastado do cinema ou da TV, Lynch mostra que continua magistral, e sua proposta é ainda muito relevante para críticos e espectadores contemporâneos.

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Rafael Senra

Escritor, compositor, autor de quadrinhos. www.rafaelsenra.com