A semiótica de um coração civil

Rafael Senra
3 min readJun 19, 2015

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Quando fiquei sabendo sobre o falecimento do compositor Fernando Brant, escrevi um longo texto em meu site, onde racionalmente organizei um apanhado de sua obra e seu legado, além de contar histórias como a do dia em que o conheci pessoalmente.

Porém, ao longo de todos esses dias de luto pela travessia derradeira do poeta, me vi emocionado por uma das inúmeras fotos que tantas pessoas tem compartilhado. Precisei de algum tempo para depurar a imediata comoção que essa imagem me trazia.

Disposto a decifrar sua misteriosa semiótica, me dediquei a tentar ler possibilidades de textos escondidos na foto, e assim entender melhor sobre o sentimento que me acometeu.

Observamos ali, em meio a tantas pessoas cantando a plenos pulmões, um jovem Brant. Abraçado com Lo Borges, de um lado, e o ex-presidente Juscelino Kubitschek de outro. Podemos pensar que ele está cercado de duas instituições imateriais pelas quais ele viveu e produziu suas obras: o Clube da Esquina e o Brasil. Um, representado na figura de um fantástico compositor adolescente, e outro, na de um importante estadista. Ambos — Lo e Juscelino — são mineiros, o que nos serve como um indicativo da bússola lírica de Fernando.

Para continuar lendo essa imagem, peço a licença de aplicar uma Gestalt, ou seja, de incluir uma outra informação que possa contrastar com a foto em si. Me vem à mente a letra de Coração Civil, do disco Caçador de Mim (Milton Nascimento, 1981). Está presente nessa letra o toque lírico e poético que marcaram as obras do autor de Canção da América: o universal e o regional, a amizade e o senso de cidadania, sonho, menino, cidade, liberdade.

Na foto, é como se o braço direito de Brant abraçasse o coração: Lo Borges representando o afeto, a amizade, os valores do Clube da Esquina. Do outro lado, seu braço esquerdo abraça sua faceta civil, representada em Kubitschek (civil: do latim civilis, genitivo de civis, “cidadão”).

Entre o coração e o civil, está o poeta; cantando a plenos pulmões, enquanto seu cabelo e suas roupas, apesar de parecerem supostamente datadas, tem um toque de juventude, de frescor, de tenra idade. Assim como o tênis da capa do disco de Lo (seria o mesmo que ele está usando ali na foto?), um signo universal que remete à juventude.

Ele poderia muito bem estar cantando versos como “Quero a utopia, quero tudo e mais / Quero a felicidade nos olhos de um pai / Quero a alegria muita gente feliz / Quero que a justiça reine em meu país / Quero a liberdade, quero o vinho e o pão / Quero ser amizade, quero amor, prazer / Quero nossa cidade sempre ensolarada / Os meninos e o povo no poder, eu quero ver”.

Enquanto Milton aparenta certa seriedade altiva — talvez pela concentração que o violão lhe exigia — , Fernando estava à flor da pele, e cantava como se não houvesse amanhã. Até mesmo o estadista Kubitschek, o presidente bossa-nova, se impressionou. O olhar que ele dirige para Brant demonstra ao mesmo tempo simpatia e espanto.

Se Juscelino fez 50 anos em 5, podemos dizer que, naquele momento, Fernando estava vivendo a eternidade em 4 minutos (o tempo de uma canção popular). O Fernando Brant desta foto é o poeta em riste, eternizado, apanhado em flagrante, com toda sua sensibilidade e quimera.

Essa foto é ainda mais significativa em nossa era presente, onde a imagem atrai tantas atenções. Devido ao custo zero da tecnologia digital, se fotografa tanto (com ou sem pau de selfie). Contudo, tão pouca alma fica registrada nas imagens contemporâneas. Quase sempre, o que se vê são sorrisos amarelos, poses egocêntricas, auto-indulgência. Há sempre uma maquiagem perpetuada pelo modelo, e corroborada pelo fotografo.

O que me emocionou nessa foto foi me deparar com um Brant de verdade. Sem as limitações da idade, ou da obrigação de parecer sério, ou de um emprego, de uma burocracia infernal qualquer. Ali observamos o Fernando Brant que nunca morrerá. É uma foto de alma, que mostra o mesmo manancial que gotejou versos em tantas canções igualmente imortais.

Tanto escrevi, mas, na verdade, quem decifrou toda essa semiótica labiríntica foi aquele sujeito logo ali atrás, abraçado com uma moça, e cujo rosto está escondido por trás do presidente.

Cerca de uma década depois dessa imagem, Márcio Borges cantaria a pedra: os sonhos não envelhecem.

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